A Royal Enfield criada na Inglaterra durante o pós-guerra ainda está viva e não negou fogo: lama, areia e buracos foram vencidos à moda antiga

Relato publicado na Revista Duas Rodas de Janeiro/2016, revisado e ampliado aqui para o site Royal Riders.

Depois de quatro anos acalentando o sonho de atravessar a Transamazônica, no início de 2015 apareceu a oportunidade através do convite de três amigos. 

Pretendia percorrer a BR-230 inteira, de Cabedelo (PB) a Lábrea (AM), mas o roteiro deles era diferente, partindo de Marabá (PA). Com isso e férias de 30 dias, teríamos tempo para incluir a perigosa BR-319 até Manaus (AM), um trecho de barco pelo Rio Amazonas até Santarém (PA) e a infame BR-163 de Santarém a Cuiabá (MT), retornando então para Brasília (DF). Seriam aproximadamente 9.000 km, metade por estradas de terra.

Os três amigos já experientes em off-road partiriam montados em motos trail leves de 250cc, eu tinha apenas a vontade e uma Royal Enfield Classic 500, das novas que vieram para o Brasil em 2012 importadas da Índia. Não era a mais adequada, mas era a que eu tinha para usar nessa aventura. Fizemos inclusive uma trilha de treinamento, 200 km pelo interior de Goiás, com sucesso. Passei meses preparando a moto com ajuda dos membros do meu moto grupo: levantamos o para-lama dianteiro, fizemos um protetor de farol e suportes para malas laterais – dois galões velhos de 20 litros foram cortados e modificados para servir como malas.

Complicado escolher entre centenas de itens na bagagem, incluindo os de acampamento e peças sobressalentes, pensando na possibilidade de sua sobrevivência depender de algo. Tentamos minimizar o risco indo na época seca, mas os acertos de férias levaram a partida para final de setembro e perto do início das chuvas. Para piorar, o trio que me convidou teve problemas e desistiu. Fui sozinho! No primeiro trecho, de Brasília até Palmas (TO), rodei 230 km e em um posto de gasolina o frentista alertou que o para-lama traseiro estava quebrado! O problema era a falta de um dos parafusos de fixação e rapidamente voltei à estrada. Deu um baque na animação, a moto não é a ideal e já está desmontando pelo caminho? O resto do dia rodei mais 670Km até Palmas por asfalto e sem problemas.

No segundo dia o nível de dificuldade começou a aumentar com as estradas de terra. O objetivo era rodar pela BR-010, que não está terminada. Peguei meu primeiro trecho de terra até Tocantínia (TO), entrei na reserva indígena Xerente, rumo ao entrocamento Rio Sono-Pedro Afonso e rumei até a divisa do estado com o Maranhão, foram 400 km no total, sendo 330 km na terra. Experimentei os vários sabores de poeira, além das costeletas de vaca de vários níveis. Fui pegando confiança e até fiz trechos a 80 km/h com o pneu dianteiro original on-road.

No Maranhão a coisa foi muito pior. O trecho de 60 km até a cidade de Carolina (MA) é área rural, erma, sem conservação, e no primeiro piscinão de poeira que passei caí feio quebrando algo no câmbio. Não me machuquei, tive trabalho para levantar a moto com todo o peso da bagagem e verifiquei que ligava, mas travou na primeira marcha. Levei três horas para percorrer o resto do caminho, a 20Km/h de noite, um breu total. Descobri que o protetor de farol que fiz ficou afastado da lente e refletia a luz para trás, ofuscando a visão. Quando cheguei a Carolina peguei uma dica de pousada no posto e fui descansar, estava acabado. A estrada ensinando o “espertão” que ali o buraco é mais embaixo…

Lendas amazônicas

Com o wi-fi do hotel, passei um vídeo do movimento solto do pedal de câmbio para o Adail e o Allan “Animal” Girotto, que me tranquilizaram sobre ser fácil de resolver. Uma coisa boa que fiz foi o seguro da moto, então na manhã seguinte (sábado) fui rebocado para Paragominas (PA), onde participaria do aniversário do Os Papas Moto Clube. Alguns integrantes seriam parceiros na viagem, mas também tiveram imprevistos e cancelaram a participação. Com ajuda dos irmãos do moto clube anfitrião consegui uma ótima indicação de mecânico e no domingo mesmo ele resolveu o problema, sem se intimidar pela moto alienígena. Um conserto rápido e simples: o impacto no pedal do câmbio moveu a haste do seletor de marchas do lugar, que uma vez recolocada na posição correta, me permitiu partir e prosseguir a viagem.

 

Entrei na Transamazônica, oficialmente chamada de BR-230, em Marabá (PA), onde instalei um mata-cachorro para evitar novos impactos nos futuros tombos que certamente viriam. Lá percebi a desatualização dos mapas, mesmo digitais, pois já existem 70Km asfaltados depois de Marabá, até a Vila Cajazeiras. Os 110 km de terra até Novo Repartimento (PA) passam pelos limites da reserva indígena Parakanã, a estrada é estreita e o trânsito de caminhões é grande. Como estava na época seca, o poeirão que subia depois da passagem de cada caminhão tornava impossível enxergar algo. Perigosíssimo, inclusive tive que sair da frente de um caminhão que vinha atrás de mim. No meio da reserva parei para fotografar uma placa até perceber os rastros de onça na pista. Vazei rapidinho!

Cheguei a Novo Repartimento por volta do meio-dia e almocei com um caminhoneiro que ajudei na estrada. Ele confirmou que havia asfalto dali para frente até Altamira (PA). Passei por Anapu (PA), famosa pela violência e conflitos de terras, abasteci e resolvi tocar até Belo Monte (PA), onde encontraria o pai de um amigo, que recebeu meus pneus off-road comprados antecipadamente e enviados para ele. Por volta de 20h já estava com os pneus amarrados na moto, e como a vila dos funcionários da obra da usina não permite visitantes, continuei até Altamira mesmo. Pilotando à noite no meio da selva asfaltada, cheguei ao maior município do mundo em área territorial às 22h. Pela manhã, deixei a moto em uma boa oficina para uma revisão rápida. Procurei um local para soldar o suporte da capa da corrente, que não aguentou a buraqueira. O soldador, um oriental que parecia aqueles antigos fabricantes de espadas, trabalhava contando histórias sobre os próximos trechos, mistérios sobre índios de olhos azuis e naves que mergulham na terra no km 150.

Na manhã seguinte parti rumo a Medicilândia (PA), 85 km de asfalto que não aparecem nos mapas ainda. Logo após a cidade acaba o asfalto de verdade. Agora serão 1700 km de terra até o final da rodovia. A aventura raiz começou com 100Km de terra terríveis até Uruará (PA), muitos piscinões de poeira encobrindo valas, desníveis, buracos. Caí seis vezes, mesmo indo com cuidado. Mas desta vez sem quebrar a moto graças ao mata-cachorro.

Dormi em Placas (PA), uma pequena cidade no trecho. Choveu durante a noite então pela manhã finalmente troquei o  pneu dianteiro liso pelo off-road que estava carregando desde Belo Monte. Deu mais segurança, claro, e depois de alguns quilômetros já estava rodando mais rápido, chegando a 60 km/h. Passei por Rurópolis, aproveitei para bater a foto no marco da cidade. Percorri as centenas de ladeiras deste trecho, ainda com receio de escorregar a dianteira apesar do pneu adequado. Pouca prática! Dormi em Itaituba, às margens do rio Tapajós, onde descansei cedo. O plano é partir ainda de madrugada para vencer o trecho ermo de 400Km de terra pela selva até Jacareacanga (PA).

Arriscando na selva

Antes do amanhecer eu já estava no ponto de encontro, o final do asfalto da cidade, esperando outro motociclista que conheci no dia anterior e faria o mesmo trecho. Olhava para o início da terra e só via o fim da iluminação pública, o começo da escuridão na mata. O rapaz apareceu um pouco atrasado. Após 70Km, já dentro do Parque Nacional da Amazônia, meu pneu dianteiro furou. Pressão baixa demais para uma estrada com muita pedra pontuda. Precisei desmontar a roda, tirar a câmara furada e trocar por uma câmara sobressalente. No treino em casa levei três horas. Na selva com a pressão da mata, levei 30min. Dei azar de não ter testado a bomba de ar manual que comprei. Ela não cabia no bico da câmara de ar! Aí vemos a mão de Deus. No trecho mais perigoso eu estava acompanhado. O parceiro tinha uma bomba correta e resolveu o problema.

A estrada por dentro do Parque Nacional é perigosa por ser estreita, com movimento forte de picapes entre as duas cidades fazendo transporte de cargas leves e pessoas. Após 180Km saímos do parque e chegamos ao primeiro ponto de apoio, um restaurante/pousada que também vende gasolina. O famoso Amigo Garimpeiro. Lanchamos, abastecemos e partimos. O tempo correndo, sol baixando, o parceiro acelerava a 80km/h e eu corria atrás para não ficar sozinho. Trecho também com ladeiras fortes, muita mata, e eu vencendo o medo de derrapar no areião, sair da estrada e nunca mais ser encontrado. A cabeça trabalhando contra é nosso maior inimigo. Foi correria até entrarmos em Jacareacanga, já início da noite.  Aproveitei o dia seguinte para descansar, visitar a praia do rio Tapajós e conhecer a cidade.

Parti de Jacareacanga bem cedo, com o plano de rodar 300Km até Apuí (AM). Antes da divisa entre PA e AM, pude ver um “gato preto” atravessar a estrada estreita com mata dos dois lados. Se estivesse me caçando teria acertado o pulo. De qualquer forma acelerei mais, apesar do barulho crescente da dianteira que lembrava um rolamento ruim. A 80Km/h via uma alternância de selva e pasto cercado das fazendas de gado. A estrada estava surpreendentemente boa e mesmo com o tempo “perdido” na balsa do Rio Sucunduri e um papo legal com a Dona Rosa, cheguei em Apuí ao meio-dia. Acho que foi a onça que me motivou!

Resolvi tocar até o próximo ponto mapeado, a Vila de Santo Antônio do Matupi, 220Km adiante. Mais uma balsa, dessa vez no Rio Aripuanã, travessia rápida com preço salgado: R$ 10 se a moto estiver com outros veículos na hora da travessia ou R$ 25 sozinha na balsa. As outras balsas nos rios Xingu e Tapajós são bem mais movimentadas e paguei menos de R$ 5. A estrada estava pior, muito esburacada e alguns trechos molhados e escorregadios. A velocidade caiu bastante. Parei em Matupi (AM) já anoitecendo. A vila nem aparece nos mapas, não tem sinal de celular, mas tinha wi-fi no hotel então pude enviar notícias para a família. É um distrito do município de Manicoré, e o forte é gado e madeira.

O próximo trecho da estrada até Humaitá (AM) foi de 180Km, passando pela aldeia Tenharim sem qualquer problema. Nada de barreira na estrada e pedágio ilegal como citam vários relatos. A estrada molhada aumentou a dificuldade com poças, atoleiros, sulcos. O barro se acumulava nos pneus, que perdiam tração, e enchiam o espaço do para-lama traseiro. Entrei na balsa do Rio Madeira em Humaitá por volta das 16h, Foram sete horas para percorrer 210Km suando debaixo do sol quente e umidade alta.

Fiquei em Humaitá por dois dias enquanto choviam canivetes. Com a dica do amigo Rogério Minotauro deixei a moto sendo revisada em uma oficina bem próxima ao hotel. Durante a espera e chuva, conheci a cidade e seu centro histórico. Alguns hóspedes novos vindos de Lábrea e de Manaus, além de conversas com outros motociclistas locais alertaram para as condições das estradas. Seriam 200 km de terra com atoleiros até Lábrea e 600 km abandonados dentro da selva fechada e já com atoleiros até a capital Manaus. Considerando tudo isso, as dificuldades na lama do trecho anterior, e o fim das férias estar chegando, tomei a dura decisão de cancelar o resto da viagem. Retorno pelo asfalto das BR-364, BR-174 até Cuiabá e BR-070 até Brasília. Realizei meu sonho de atravessar a Transamazônica e vou me preparar melhor para a próxima vez, para visitar os amigos em Manaus.

– – – fim do relato na revista e início do trecho novo – – –

 

Após a moto receber um trato na oficina em Humaitá, peguei o rumo de casa. Serão 3400Km de asfalto até em casa. Na saída da cidade, algumas fotos nas placas. São nossos troféus de estradeiro. Percorri os 200Km da BR-319 até Porto Velho, só imaginando como estariam os 400Km de atoleiros no rumo de Manaus. Durante o trajeto, a cabeça lançava aquela dúvida se deveria ter ido até o início do barro para ver com meus próprios olhos a situação. Mas a decisão estava tomada, com as melhores informações disponíveis, e era hora de seguir adiante. Neste dia ainda almocei com amigos da empresa onde trabalho, que tem escritório em Porto Velho, e depois do almoço rodei mais um trecho, pernoitando em Jaru, Rondônia.

No dia seguinte, mais estradão. A BR-364 corta todo o estado, pista simples e bastante movimento de caminhões. Um trecho próximo a Ji-Paraná estava em obras, asfalto riscado. Fica meio chato de pilotar “contra” os sulcos, a roda fica bobinha. Mas com firmeza no guidão vai que vai, o trecho tem só 40Km e já termina. Por volta do almoço estava chegando em Cacoal, onde encontrei com mais um amigo virtual, o Fernando “Rufus” do MC Born To Ride. Amizades se tornando reais, fora do computador.

Batemos um ótimo papo durante uma pizza no posto de gasolina, e segui adiante. Mais uma foto na divisa RO/MT, e entrei no Mato Grosso já anoitecendo. Atravessei um bom trecho bem escuro, passei por Comodoro, e tentei seguir alguns carros mas acho que eles se assustavam e corriam. Então achei uma Kombi na estrada! Não tinha como ela fugir uhaeuheauhea. Segui a danada até a cidade… ou o que achei que era uma cidade… vi a claridade no horizonte e quando chegamos perto era uma queimada. Demorou mais uma hora pra chegar na cidade, chamada Pontes e Lacerda. No primeiro hotelzinho que vi, já parei. O recepcionista (e dono) me adverte! “Nossa, a maioria que chega aqui nesse horário aparece só de cueca!”. Que legal né? Fiquei sabendo que o trecho da divisa estadual até Nova Lacerda é bem ermo, perigoso de acidentes com animais na pista e assaltos.

No dia seguinte a meta era chegar em Cuiabá. Contatos com a rede de amigos forneceram o número do Presidente do Lunáticos do Asfalto MC, Marco Rosada, para a cervejada da noite. Desde Comodoro a estrada agora se chama BR-174. É uma Norte-Sul amazônica que não foi terminada, tem vários trechos não construídos no MT e AM. É mais conhecida como Rodovia Manaus-Boa Vista. Tem uma bela história, um dia passarei por ela também. Em Cáceres a estrada se torna a BR-070 no rumo para Cuiabá e Brasília. Me sinto mais perto de casa, mas é só um conforto psicológico. No final do dia chego em Cuiabá conforme planejado, ainda de dia. Rendeu bem a estrada, tocando meus 90Km/h sem pressa, e ainda carregando aquele pneu traseiro offroad. O Rosada me encontra em um posto e me guia para a sede do Lunáticos, onde fazemos um pequeno churrasco. É terça-feira! Na quarta tem o point semanal deles na sede, e a festa será bem maior. Resolvi ficar mais um dia, claro! Conhecer a galera toda. Baita festa e ótima estrutura de apoio aos viajantes mantida pelo Lunáticos do Asfalto MC. Muito agradecido mesmo!

Quinta cedão deixo Cuiabá, pela BR-070, rumo a Campo Verde, Primavera do Leste, Barra do Garças e então Goiás. A primeira lambança do dia foi não lembrar do dinheiro do pedágio e ter que retornar vários km até um bar pra obter um dinheiro vivo usando o cartão de crédito. Não é nada mas perde uma horinha. Vou embora, passo o pedágio, conheço a Serra de São Vicente, trecho montanhoso e sinuoso perto de Cuiabá e me divirto um pouco nas curvas, depois de dias rodando em retões intermináveis. No trevo da BR-070 com a BR-364, sem qualquer sinalização aparente, pego o rumo errado para Rondonópolis, só percebo uns 20km depois (o sol tá na direção errada kkk) e retorno. A região não tem muito posto de gasolina, não é bom dar mancada no trecho. Passo um posto feioso e nem entro, encontro outro melhorzinho mais pra frente. Passo direto por Primavera do Leste, atravesso as duas terras indígenas Xavante da região, e finalzinho da tarde, caindo uma forte tempestade, ventos, raios e chuva, chego em Barra do Garças. Me “escondo” atrás de um caminhão pra reduzir o impacto da ventania. Pego um hotelzinho bom (decido que eu mereço kkk) e vou conhecer os amigos Marcelino e Lilian, do Aventureiros do Araguaia MC. Aquela cervejinha final do dia na beira do Rio Araguaia não podia faltar.

Já no último trecho da viagem, uma confusão com o fuso horário me fez sair tarde demais! 9:30h parti de Barra do Garças indo pela BR-070 como planejado. A estrada está toda remendada e esburacada em um trecho próximo de Jussara/GO. Depois de “Goiás Velho” o estado assumiu a BR, botou o nome de GO-070 e está duplicando até Goiânia. Na cidade de Itaberaí tem a saída para o traçado de volta para a BR-070, tudo asfalto novo até Itaguari, onde então inicia um trecho de 40km até a BR-153 que está 70% asfaltado. As pontes são de madeira, e há vários trechos de pouco asfalto alternando com muita terra. Do cruzamento com a BR-153 até Cocalzinho, a estrada é toda de terra, boa mas com bastante cascalho. De Cocalzinho a Brasilia tudo asfalto em boa condição. Uma boa aventura hoje, inclusive com travessia de córregos, rasos, mas de qualquer forma são emocionantes. Cheguei em Brasília por volta das 19h, pegando o congestionamento em Ceilândia e Taguatinga. Na cidade vi mais animais do que na floresta toda…

E assim termina esta aventura, realizando um sonho de moleque. A região é fantástica, vou voltar! Até porque fiquei devendo passar na BR-319 até Manaus…

Relato na revista (original em 2016, republicado em 2021): Uma clássica na Transamazônica

Para saber mais sobre esta aventura, seu dia-a-dia e tudo que veio depois: Projeto Estradas Amazônicas